quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Luar gélido

Às vezes aprecio a Lua e pergunto-me se também estás extasiado por esta visão.
Apenas vislumbro o esboço de que não quero sentir-me como Ismália... afogada em uma doce utopia.

Sterrennacht boven de Rhône, de Vincent van Gogh

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Em todas as ruas te encontro


Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

(Mário Cesariny)


Small Train Station at Night, de Paul Delvaux

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Extinguir

What Else is There?, de Röyksopp:



"I am the storm, I am the wonder
And the flashlights, nightmares
And sudden explosions
..."

Estava lendo em meu quarto, jogada na cama. Terra Sonâmbula do Mia Couto teimava ficar entre minhas mãos. O computador emitia uma luz azulada e Morning Glory do Jamiroquai.

Meus pais assistiam à televisão na sala; podia escutar qualquer burburinho. Ouvi passos aflitos. Bateram à porta. Minha avó dizia desesperadamente que o Sol ia explodir.
- Como?! Mas isso não tem como acontecer!
- Olhe o noticiário!
Decidi deixar o livro ao lado do abajur com formato de Saturno e finalmente saí do quarto. Todos os canais mostravam o Sol inchado, vermelho-laranja. Voltei e abri a janela do meu espaço. O céu não era mais azul e a estrela estava colossal.
Atravessei o quarto correndo, desejando a sala. Meus pais estavam no corredor, entre os dois ambientes. As lágrimas escapavam dos meus olhos como águas de uma comporta recém-aberta. Senti que morreria naquele momento e tentei dar minhas mãos a eles para que morrêssemos juntos e com breve conforto.

Não consegui alcançar nem seus dedos.




Acordei.

Sunrise by the Ocean, de Vladimir Kush

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O que Capitu teria dito antes de partir

"(...) É esse o seu modo de ser ambíguo
Sábio, sábio
E todo encanto
Canto, canto
Raposa e sereia da terra e do mar
Na tela e no ar

Você é virtualmente amada amante
Você real é ainda mais tocante
Não há quem não se encante

Um método de agir que é tão astuto
Com jeitinho alcança tudo, tudo, tudo
É só se entregar, é não resistir, é capitular

Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares
Capitu

No site o seu poder provoca o ócio, o ócio
Um passo para o vício, o vício
É só navegar, é só te seguir, e então naufragar (...)"

Capitu, de Luiz Tatit

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"O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
- E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; - que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção..." (p. 171).

- Agora sei que a injúria lançada não é explicada por uma convicção sincera... mas pela sua covardia. Sim, és covarde! Os ciúmes não foram provocados pela semelhança entre Ezequiel e Escobar... é ilusão. Não suportas a minha força... e repulsas a idéia de ter sido submissa a outro.

"Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver." (p. 177).

"Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada." (p. 183).


La magie noire, de René Magritte

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ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 30 ed. São Paulo: Ática, 1997.